O Regulamento do Imposto de Renda — o Decreto 3.000, de 26 de março de 1999 —, em seu artigo 80, trata das deduções relacionadas com despesas necessárias à saúde do contribuinte, ali denominadas como despesas médicas. As deduções podem ser feitas, ou seja, pode o contribuinte não considerá-las para efeitos fiscais. Assim, algumas pessoas optam por pedir descontos quando pagam diretamente aos médicos em dinheiro, ao que parece, incentivados pelo tratamento injusto que sofrem por parte da Receita. Isso pode ser crime e deve ser evitado. Mas agentes do fisco também cometem crime, quando o lançamento altera a verdade dos fatos.
Tais despesas não estão sujeitas a qualquer limite, uma vez que a Constituição assegura no caput do artigo 6º que a saúde é um dos direitos sociais. Tanto assim que a pessoa pode obrigar o poder público a custear-lhe tratamento médico de custos elevadíssimos, por medidas judiciais.
O artigo 73 do regulamento afirma que todas as deduções se sujeitam a comprovação ou justificação perante o fisco. O parágrafo 1º menciona a possibilidade de que deduções exageradas ou se não forem cabíveis possam ser glosadas sem a audiência do contribuinte.
Na prática, porém, temos visto diversos casos de injustiças contra o contribuinte, tratado como se fosse um marginal, a quem se atribui prática de crime do qual é presumidamente tido como culpado, sem direito a defesa.
Tal comportamento, além de gerar conflitos que melhor seria se fossem evitados, impede que o contribuinte tenha respeito pelo fisco, que faz questão de se travestir de animal irracional, predador, cujo único desejo é fazer vítimas, a merecer o ridículo apelido de leão.
Já ocorreu recentemente que um contribuinte foi intimado para exibir relatórios médicos, pareceres e laudos clínicos, relativos a grave enfermidade que o acomete e por conta da qual fez pagamentos expressivos, comprovados de forma idônea, não só com recibos e cópias de cheques, mas com declarações expressas dos profissionais que receberam os pagamentos em face dos serviços efetivamente prestados.
Desejava o auditor fiscal que o contribuinte fornecesse: “orçamento com indicação dos procedimentos realizados, relatórios, laudos e/ou documentos probatórios da realização dos serviços, bem como identificação do paciente”.
Tal informação não pode nem deve ser prestada. O artigo 928 do RIR obriga a pessoa física a prestar informações sobre seus rendimentos e sobre os aspectos fiscais e tributários de sua vida econômica, mas não sobre sua vida íntima, sobre o que faz parte de sua privacidade, honra e imagem, nos termos do artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal. Eis o que diz o texto da Carta Magna:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Portanto, não existe obrigação, em relação a tratamentos médicos, especialmente de doenças que atingem até mesmo a honra das pessoas, que o contribuinte forneça informações sobre “procedimentos realizados, relatórios, laudos e/ou documentos probatórios da realização dos serviços…”. Se o contribuinte já forneceu os recibos e esses foram confirmados pelo profissional como verdadeiros e os serviços lhe foram prestados, a “glosa” é absolutamente ILEGAL e a dedução é legítima.
O artigo 80 do RIR em nenhum momento condiciona a dedução dessas despesas a qualquer pesquisa sobre os “procedimentos realizados, relatórios, laudos e/ou documentos probatórios da realização dos serviços…”. Não pode o fisco ir além do limite determinado pelo regulamento. Se o fizer, estará agindo contra a lei e, em evidente abuso de direito, lançando presunção de fraude não só sobre o contribuinte, mas também sobre os profissionais que lhe prestaram serviços e assinaram os recibos, declarando ainda que são eles verdadeiros.
O Decreto 1.171, de 22 de junho de 1994, que trata do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, ordena que:
VIII – Toda pessoa tem direito à verdade. O servidor não pode omiti-la ou falseá-la, ainda que contrária aos interesses da própria pessoa interessada ou da Administração Pública. Nenhum Estado pode crescer ou estabilizar-se sobre o poder corruptivo do hábito do erro, da opressão ou da mentira, que sempre aniquilam até mesmo a dignidade humana quanto mais a de uma Nação.
Ademais, a Constituição Federal, em seu artigo 37, ordena:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência…
Ora, se toda pessoa tem direito à verdade e o servidor não pode omiti-la ou falseá-la, é inadmissível que despesas dedutíveis sejam “glosadas” com o uso de uma tentativa pouco sutil de alterar a verdade ou inverter o ônus da prova.
Não cabe ao contribuinte provar que não sonegou. Cabe ao fisco provar a suposta sonegação ou dedução indevida. Nesse sentido é a doutrina.
HUGO DE BRITO MACHADO, referência mundial em Direito Tributário, publicou inúmeros livros, dentre os quais Mandado de Segurança em Matéria Tributária (Ed. Dialética, S.Paulo, 2003) em cuja página 272 dá-nos preciosa lição:
O desconhecimento da teoria da prova, ou a ideologia autoritária, tem levado alguns a afirmarem que no processo administrativo fiscal o ônus da prova é do contribuinte. Isso não é, nem poderia ser correto em um estado de Direito democrático. O ônus da prova no processo administrativo fiscal é regulado pelos princípios fundamentais da teoria da prova, expressos, aliás, pelo Código de Processo Civil, cujas normas são aplicáveis ao processo administrativo fiscal. No processo administrativo fiscal para apuração e exigência do crédito tributário, ou procedimento administrativo de lançamento tributário, autor é o Fisco. A ele, portanto, incumbe o ônus de provar a ocorrência do fato gerador.
O lançamento de que foi vítima esse contribuinte tem todas as características do crime de excesso de exação. Já está na hora de pessoas honradas serem tratadas como tal pelos servidores públicos. Sem isso, não haverá respeito entre as partes.
Fonte: Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.