Sabemos de longa data que muitas pessoas, apesar de não terem o menor interesse em constituir sociedade, sem o menor affectio societatis, assim o fazem, simplesmente para fugir da responsabilidade pessoal e ilimitada imposta pela regra do empresário individual. Obviamente, a sociedade constituída nestes moldes ocasiona, minimamente, desconforto aos sócios, afinal, em regra, sempre um deles acaba como mero figurante – mas com todos os riscos que a figura de sócio está exposta.
A responsabilidade pessoal dos sócios por débitos da sociedade é tema de relevância e não encontrou por parte de nossos julgadores unificação de entendimento. Tal circunstância gera insegurança jurídica e impõe a adoção de cautela daquele interessado em destinar recursos ao exercício da atividade empresarial, em relação ao seu próprio patrimônio, para que não haja o comprometimento que supere a parcela destinada a composição do capital social da entidade empresária.
Às vésperas do início da vigência da Lei 12.441, de 11 de julho de 2011, 180 dias após sua publicação no DOU, ou seja, 12/01/2012), que modifica o Código Civil de 2002 ao incluir a nova figura da empresa individual, reacende a discussão da matéria referente à limitação da responsabilidade pessoal do sócio.
O ordenamento jurídico atual aponta duas figuras que podem desenvolver a atividade empresarial: a pessoa física, conhecida como empresário individual, e a pessoa jurídica, até então como sociedade empresária. Na primeira, apesar da declaração de empresário individual apontar a necessidade da informação do capital social, as dívidas oriundas da atividade exercida podem alcançar o patrimônio pessoal, inclusive adquirido anteriormente ao início da atividade, pelo empresário, sem limitação.
As sociedades empresárias, em especial as sociedades limitadas, por outro lado, por ser pessoa jurídica no desenvolvimento da atividade, só respondem, em regra, com o seu próprio patrimônio, sem incluir a pessoa do sócio e seu respectivo patrimônio na responsabilidade pelas dívidas sociais. Em outras palavras, a obrigação do sócio é a integralização do capital social e uma vez realizada, não há (ou não haveria) que se cogitar sua responsabilização por dívida da sociedade.
A nova lei introduz a possibilidade de que a real intenção do investidor único venha a ser alcançada: investir em uma atividade empresarial independentemente da figura de outro e sem que para isso seja comprometido ou colocado em risco, além do capital social integralizado, toda parcela restante do seu patrimônio.
O legislador, para corrigir a distorção gerada na atividade do empresário individual, onde sua responsabilidade é ilimitada, incluiu no sistema legislativo a empresa individual de responsabilidade limitada. Entendo que, diferente de algumas críticas publicadas, não há dúvida a respeito da pessoa que exercerá a atividade: a empresa individual trata-se de pessoa jurídica, constituída por única pessoa com responsabilidade limitada ao capital a ser integralizado. Basta observar o artigo 2º da Lei 12.441/2011, que aumenta o rol de pessoas jurídicas contido no art. 44 do Código Civil em vigência.
Esta pessoa jurídica, que o legislador preferiu não tratar como sociedade, provavelmente porque o Código Civil (art. 981) pressupõe para tanto “contrato” celebrado por “pessoas”, deverá ser constituída por única pessoa e tem determinação de valor mínimo de capital social – 100 vezes o maior salário mínimo vigente no país.
Tendo como base que a empresa individual é pessoa jurídica, há sensível diferença entre ser membro e ser o titular dos direitos e obrigações da atividade. Assim como ocorre nas sociedades, a responsabilidade da empresa não se confundirá com a da pessoa que a constitui.
Como bem determinou o legislador, a empresa individual tem nome e capital próprios, este último, como aludido, de montante mínimo, o que tem enorme significado, inclusive para solidificar a limitação de responsabilidade patrimonial do integrante da pessoa jurídica.
Destaca-se que não há outra forma de exercício de atividade empresarial que exija valor mínimo de capital social, diferença marcante nessa modalidade empresarial.
O legislador impôs ainda que as regras da sociedade limitada serão aplicadas à empresa individual , no que couber. A análise das razões do projeto de lei de autoria do deputado Marcos Montes, já apontam que a nova modalidade empresarial nada mais é que a figura da “sociedade unipessoal”, já conhecida no ordenamento pela subsidiária integral, prevista na Lei 6.404/76 e pela empresa pública.
Neste aspecto, preferiu o legislador ser mais conservador em não denominar “sociedade” quando a sua constituição se dá por única pessoa, o que não macula, a meu ver, o intuito legislativo de atendimento aos anseios empresariais, corolário da correta interpretação que deve ser dada à norma.
Aliás, justamente por se reportar às sociedades e não às regras do empresário individual é que entendo que a pessoa que constituir a empresa pode ser jurídica ou natural e esta não precisa ter, necessariamente, capacidade, desde que não exerça pessoalmente a administração da empresa e que todo capital social esteja integralizado.
Interessante debate pode ser travado a respeito da atividade a ser desenvolvida sem empresarialidade, como ocorre com os profissionais liberais. Apesar deste novo instituto ser denominado de “empresa individual”, pressupondo a empresarialidade, o parágrafo 5º do artigo 980-A aponta a possibilidade de prestação de serviços de qualquer natureza e, mais adiante, no parágrafo 6º, indica a aplicação das regras da sociedade limitada no caso. Esse conjunto de regras leva a crer que a empresa individual pode ter o objeto de sociedade simples e, logo, não ter seu arquivo em registro público mercantil, mas em cartório de registro civil de pessoas jurídicas.
Quanto ao instituto do direito falimentar, aplicado ao empresário individual e sociedade empresária, entendo que a empresa individual, por ser pessoa jurídica, ficará equiparada à sociedade empresária, o que significa que seu membro não terá a falência decretada, haja vista que tem a responsabilidade limitada pela integralização do capital social.
Enfim, a nova lei apenas é resposta a uma necessidade há muito exigida no que concerne a separação patrimonial daqueles que têm interesse em desenvolver a atividade empresarial individualmente.
A disposição de correr riscos é afeta à atividade, mas isso não significa que o risco deva alcançar todo o patrimônio pessoal de uma vida. A limitação desse risco é importante inclusive para estimular o incremento da atividade, contratação de funcionários e investimento de maior vulto. A limitação do risco pela integralização do capital social é forma geradora de desenvolvimento micro e macroeconômico, impactante de todas as formas na sociedade.
Os credores da empresa, se entender conveniente, têm condições de negociar garantias, como já fazem com sociedades empresárias e deixam de concorrer com os credores pessoais de quem constitui a empresa.
Mais uma vez demonstra-se que o patrimônio pessoal não deve ser confundido com o patrimônio social e o quanto isso é relevante para o desenvolvimento saudável da atividade econômica. Da mesma forma que se impõe essa diferença e se estabelece limites de afetação, o alcance do patrimônio pessoal do titular que integraliza o capital social deve ocorrer em condições extremas e pontuais.
O advento da nova lei deve fazer repensar a forma de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica ou da responsabilidade de sócios por dívidas sociais, a fim de que não seja banalizada em decisões judiciais sem demonstração probatória suficiente.
A grande incidência de responsabilização dos sócios por dívidas sociais em decisões judiciais baseadas em suposições de mau uso da sociedade vai diametralmente de encontro com o objetivo de uso da pessoa jurídica pelo empresariado, causa insegurança aos investidores, encarece o custo da atividade e intimida o crescimento econômico organizado e salutar.
O grande fantasma do meio empresarial hoje é o temor da responsabilização pessoal indiscriminada, seja na esfera civil, tributária ou trabalhista. A Lei 12.441 vem solidificar a real distinção patrimonial, que merece ser respeitada nos estritos limites da lei.
Elaborado por: Daniele de Lima de Oliveira – Professora de Direito Empresarial do Complexo de Ensino Andreucci e advogada do escritório Tácito B. C. Advogados.
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