O critério central que sempre governou o reconhecimento da insignificância no âmbito do direito penal tributário ou mesmo no delito de descaminho, assim como na esfera das contribuições sociais (crimes previdenciários), reside no valor mínimo exigido para que se proceda o ajuizamento da execução fiscal (STJ, REsp 573.398, rel. Min. Felix Fischer, j. 02/9/04). Esse critério sempre foi aceito pela jurisprudência, sem rupturas, salvo, como veremos, no período de 2005 a 2007.
Uma apertada síntese sobre essa evolução jurisprudencial pode ser feita da seguinte maneira:
1) de 1997 a 2001: o critério (da insignificância) foi o valor do ajuizamento da execução fiscal, que era de R$ 1.000 (por força da Lei 9.469/97, artigo 1º). Particularmente no que concerne ao âmbito tributário federal, no princípio, consolidou-se o entendimento no sentido de se aplicar a insignificância para possibilitar o trancamento da ação penal em relação aos impostos inferiores a R$ 1.000 (cf. artigo 1º da Lei 9.469/97 e ainda artigo 20 da MP 1.542-28/97 – STJ, HC 34.281-RS, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 08/6/2004).
2) 2002 e 2003: com a entrada em vigor da Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, esse valor foi alterado para R$ 2.500,00 (esse critério foi adotado amplamente e sem discussão pela jurisprudência, até o ano de 2004) (STJ, HC 34.281-RS, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 8/6/2004).
3) 2004: a novidade veio em primeiro lugar com a Portaria 49, de 1° de abril de 2004, do ministro da Fazenda, que autoriza (a) a não inscrição como dívida ativa da União de débitos com a Fazenda Nacional de valor até R$ 1.000 e (b) o não ajuizamento das execuções fiscais de débitos até R$ 10.000. Depois surgiu a Lei 11.033/2004, artigo 21 – reiterando o valor de R$ 10 mil.
4) de 2005 a 2007: a toda ação corresponde uma reação. Dentro do STJ, por iniciativa do ministro Felix Fischer, foi criado um verdadeiro “leito de Procusto” (que aceitava hóspede em seu leito, com uma condição: se fosse menor que sua cama espichava-lhe os pés, se fosse maior cortava-lhe a perna). No REsp 685.135-PR (j. 2/5/05) o ministro passou a considerar como válido para a insignificância o valor de (apenas) R$ 100.
Seu argumento: por força do artigo 18, parágrafo 1º, da Lei 10.522/2002, créditos até esse valor foram cancelados. Acima disso (e até R$ 10 mil) simplesmente não se ajuizava a execução. O que importa é o valor do crédito cancelado, não o quantum da execução. Esse falacioso argumento, desenvolvido pelo ministro Fischer, preponderou no STJ até por volta de 2007.
A premissa posta pelo citado ministro (que se destaca no cenário nacional por possuir alguns neurônios a mais que nós, os demais seres mortais comuns) é astuciosa e enganosa pelo seguinte: se o crédito até R$ 100 foi cancelado, não há que se falar em delito tributário. O cancelamento do crédito tributário faz desaparecer o delito. Como pode ter incidência o princípio da insignificância em um fato que não é sequer formalmente típico. Em outras palavras: referido princípio pressupõe a existência de um fato formalmente típico. Do contrário, não há que se falar no princípio da insignificância. O ministro Fischer, com sua habilidade argumentativa, simplesmente acabou com a incidência da insignificância no âmbito dos delitos tributários e de descaminho. A jurisprudência, entretanto, seguiu seus passos (até por volta de 2007), embora fossem claudicantes (além de incoerentes e absurdos). Conclusão: nesse período preponderou o “leito de Procusto” forjado pelo ministro Fischer.
5) 2007: em 10/10/2007 a 8ª Turma do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) rebelou-se contra o “leito de Procusto” do STJ (que só admitia a insignificância até o limite de R$ 100). Na histórica Apelação Criminal 2003.70.03.009921-6-PR, a Turma citada, em acórdão relatado pelo desembargador Élcio Pinheiro, passou a admitir (pela primeira vez, até onde sabemos) o princípio da irrelevância penal do fato (até o limite de R$ 2.500). Note-se: não se chegou aos R$ 10 mil (por se entender que esse valor seria desproporcional). Mas tampouco se aceitou a camisa de força dos R$ 100,00. Acima desse valor e até R$ 2.500,00 o fato passou a ser penalmente irrelevante (o que significa a dispensa da pena).
6) 2008: em 19/8/08 a 2ª Turma do STF (Supremo Tribunal Federal), no HC 92.438-PR, sendo relator o ministro Joaquim Barbosa, voltou a aceitar o valor de R$ 10 mil como limite do princípio da insignificância, por força da Lei 11.033/2004, artigo 21, que fixou esse valor para o ajuizamento da execução fiscal. Esse mesmo limite foi reiterado na Medida Provisória 449/08 (artigo 1º, parágrafo 1º), que passou a considerar até R$ 10 mil como dívida de pequeno valor (que não justifica o ajuizamento da execução fiscal). Ora, se o crédito até esse montante não é relevante para fins fiscais, com muito maior razão não o é para fins penais (daí o acerto do entendimento da 2ª Turma do STF, no HC 92.438-PR).
A partir dessa decisão da 2ª Turma do STF caiu por terra o “leito de Procusto” do ministro Felix Fischer que, quase isoladamente, continua admitindo só o valor de R$ 100 (REsp 992.758-PR, j. 16/12/2008).
Em vários outros julgados o STJ está seguindo o STF: REsp 992.756-RS, rel. Min. Paulo Gallotti, j. 14/10/08; REsp 966.077-GO, rel. Min. Nilson Naves, j. 14/10/08; HC 110.404-PR, rel. Min. Arnaldo Esteves etc. Como se vê, na atualidade, o que vale é o valor de R$ 10 mil para o efeito da incidência do princípio da insignificância.
O “leito de Procusto” do ministro Felix Fischer está deixando de ser referência nessa matéria. A jurisprudência atual, sabiamente, está seguindo o critério da lei: se até R$ 10 mil o crédito tributário não justifica a execução fiscal, com muito mais razão não pode ter incidência o direito penal, porque dos fatos mínimos (dos delitos de bagatela) não deve cuidar o juiz (minina non curat praetor).
Descaminho: tudo quanto foi exposto é válido também para o delito de descaminho, que consiste em não pagar, no todo ou em parte, o imposto devido pela entrada ou saída de mercadorias do país. Na atualidade deve ter incidência o disposto no artigo 21 da Lei 11.033/04, que adotou o valor de R$ 10 mil. O que vale para o delito tributário vale para o descaminho. Aliás, por força da MP 449/08, todo crédito da União até R$ 10 mil é de pequeno valor, de modo a não justificar o ajuizamento da execução fiscal.
Crimes previdenciários: também no âmbito dos delitos previdenciários se discute qual seria o valor que deve ser considerado insignificante para fins penais, isto é, para se reconhecer a atipicidade do fato. O limite era de R$ 2.500. Depois (1999) passou para R$ 5.000. Agora está se tornando sustentável a tese dos R$ 10 mil.
Se o valor hoje admitido pelo STF (HC 92.438-PR) é de R$ 10 mil (por força da Lei 11.033/2004, artigo 21), nos casos de créditos tributários, nada impede (aliás, tudo aconselha) estender esse limite também para os delitos previdenciários. O artigo 21 citado faz referência a débitos da Fazenda Nacional, que hoje são arrecadados pela Super Receita. Quem arrecadava a contribuição social antes era o INSS. Agora, com a Super Receita, cabe à Fazenda Nacional arrecadar e fiscalizar todos os tributos e contribuições sociais. Conclusão: já não há como distinguir o crédito tributário do previdenciário. O limite da insignificância (de R$ 10 mil) passou a ser critério universal (para os delitos tributários, previdenciários e descaminho).
Fonte: por Luiz Flávio Gomes, em www.ultimainstancia.com.br – 25/02/2009